Nossa passagem pela ascensão da esquerda na Colômbia

Durante o segundo turno da eleição presidencial na Colômbia, estivemos por quatro dias em Bogotá integrando a Comissão Internacional do PSOL e acompanhamos o enorme triunfo do povo colombiano com a vitória de Gustavo Petro e Francia Marquez.

7 jul 2022, 16:04 Tempo de leitura: 6 minutos, 59 segundos
Nossa passagem pela ascensão da esquerda na Colômbia

Durante o segundo turno da eleição presidencial na Colômbia, estivemos por quatro dias em Bogotá integrando a Comissão Internacional do PSOL e acompanhamos o enorme triunfo do povo colombiano com a vitória de Gustavo Petro e Francia Marquez.  Uma vitória eleitoral muito forte do povo colombiano, que demonstra a expressão da força das lutas populares que estão se desenvolvendo já há algum tempo naquele país. 

A Colômbia é um país que, desde as décadas de 1970 e 80, tem sido alvo de muita interferência estadunidense – a esquerda lá sempre foi muito demonizada por forças norte-americanas, em especial no contexto da Guerra Fria. A perseguição à esquerda na Colômbia foi durante muito tempo uma realidade e a esquerda sempre foi mantida pelas forças dominantes na clandestinidade dos processos políticos. Como nos disse o companheiro Camilo González, do Indepaz, falar de interesses estadunidenses na Colômbia é falar de uma força tão enraizada que atua a partir de dentro, não de fora. 

Essa votação de Francia, e em algum grau também a de Petro, reflete as mobilizações sociais diversas vividas pela Colômbia no último período, que tiveram como linha de frente a juventude, as mulheres e os afro-colombianos. Aqui iremos contar um pouco de como foi participar deste momento histórico não só para a Colômbia, mas para toda América Latina.

Pacto Histórico

Fomos à Colômbia como parte da delegação internacional que contou com observadores de distintos países, como Espanha, Bélgica, Bolívia, Peru, Chile e Equador. Fomos recebidos oficialmente pela direção do Pacto Histórico (PH), coalizão eleitoral que sustentou a candidatura de Petro e Francia. A chapa foi fruto de um processo de prévias, onde Petro foi bem votado, mas quem surpreendeu mesmo foi Francia Marquez, que teve quase um milhão de votos. 

Durante nossa estadia, realizamos reuniões com os observadores internacionais e responsáveis eleitorais, debatendo com deputados e responsáveis a questão da hipótese de fraude. Foi decretada, na quinta-feira anterior à votação, a prisão de dezenas de líderes juvenis sob a alegação de uma hipotética explosão social caso Petro e Francia fossem derrotados e não aceitassem o resultado.

Indepaz e os acordos pela paz

A principal contradição que atravessou a eleição foi a questão dos acordos de Paz. Uma das principais reuniões foi com o Indepaz, onde estivemos com Camilo Gonzalez, principal dirigente e articulador. O Indepaz foi decisivo para a assinatura do acordo de Paz de 2016, em Havana, que derivou no ingresso das FARC na vida civil, deixando as armas. As FARC mudaram seu projeto: hoje são um partido legal, chamado “Força Alternativa Revolucionária do Comum”, ou “Comunes”, e tiveram direito a 10 assentos no congresso. 

Fizemos uma reunião com sua principal figura pública, a senadora Sandra Ramirez, e foi falada da importância de um novo ciclo não só para a América Latina, mas para as direções de esquerda da América Latina, que precisam retomar os planos em comum para o continente, que passem por mais distribuição econômica, preservação ambiental, e um plano de combate aos interesses capitalistas do narcotráfico em comum.

A entrada das FARC na vida civil e política do país possibilitou uma espécie de despertar da luta social. Houve, por exemplo, uma intensa mobilização de mulheres, que tiveram o direito ao aborto conquistado recentemente, e o levante popular e juvenil de 2021, combinando um movimento da juventude nas ruas com uma greve geral que superou um mês. Esse levante alterou a relação de forças e, agora, a luta pela paz vai exigir um grande enfrentamento às milícias, à ultradireita e aos grupos paramilitares.

A votação

Ao contrário das previsões mais pessimistas, o processo no dia da votação foi massivo, inibindo qualquer tentativa de fraude. Vale dizer que a Colômbia é um  país de dimensão continental e o terceiro mais populoso da América Latina, com mais de 50 milhões de habitantes. A avaliação dos meios de comunicação é que a votação ocorreu sem “grandes incidentes”, apesar de duas mortes: um policial morto num atentado com bomba no norte do país e um fiscal do PH assassinado a tiros na região de Cauca. O resultado foi o seguinte: Petro e Francia tiveram 50,44%, com 11.281.002 votos, contra 47,31% de Rodolfo Hernandez, que teve 10.580. 399 votos.

Soy Porque Somos

Sem lugar a dúvidas, a grande novidade do cenário eleitoral foi a irrupção de Francia Marquez e de seu grupo, Soy porque Somos. Francia é uma militante ambiental e ativista antirracista. É a primeira vez que uma mulher negra é eleita ao cargo de vice na Colômbia, o que revela a força do movimento afrocolombiano e do movimento de mulheres. Também vale destacar que Francia é do Cauca, uma região empobrecida e historicamente esquecida no país. O Soy porque Somos busca inspiração nos processos de negritude e da filosofia Ubuntu, fazendo menção à Marielle Franco e outras militantes negras brasileiras.

Tivemos uma reunião com parte da equipe de Soy porque Somos de Bogotá, uma geração muito jovem, que está buscando dar seus primeiros passos na luta política, se articulando na forma de redes e “mandatos”, ou seja, demandas de cada setor social. Se apresentaram a nós não como um partido, no sentido de ter uma estratégia definida, mas como uma rede que organiza lutas com temáticas diversas, pela base. Uma reivindicação do grupo é que Francia tenha um Ministério, pra além da vice-presidência (Ministério da Igualdade, ou Reparação). A ideia é seguir fortalecendo sua figura, com vistas a tê-la no cargo de presidente de fato em quatro anos. 

O discurso da vitória

O ato de comemoração da vitória ocorreu no centro de eventos “Movistar”, um complexo onde ocorrem shows e eventos no centro de Bogotá, com capacidade entre 10 e 15 mil pessoas. O ato contou com uma estrutura muito bem organizada, com efeitos especiais, telão, apresentadoras conhecidas e grupos musicais famosos. Os momentos mais emocionantes foram a chegada de Francia ao palco, levando consigo todo o grupo de direção do Soy porque Somos, em um gesto de coletividade e a entrada da Guarda indígena, destacamento de auto-defesa do movimento indígena que cumpriu um papel decisivo no levante de 2021.

Francia fez um discurso relacionando a vitória com as pautas principais: a defesa das comunidades afrocolombianas, a referência ao levante da juventude e o peso das mulheres, além de citar a luta ambiental e a causa LGBTQIA+. Petro celebrou a vitória propondo reconciliação nacional e afirmando a necessidade de um “desenvolvimento capitalista humano”. Seu ponto mais forte foi o compromisso de transição ambiental, a defesa da Amazônia e das comunidades originárias.

Ainda durante o discurso de Petro, a mãe de um jovem assassinado durante o levante, Dilan Cruz, trouxe um retrato do filho ao palco, dividindo o microfone com Petro. O público ressoou com a chamada de “liberdade, justiça” e resistência”, demonstrando que, apesar do discurso conciliador de Petro, a memória do levante ainda segue muito viva na vanguarda combativa.

Algumas perspectivas imediatas

Nossa presença na Colômbia foi um processo importante para nos conectarmos com os novos processos políticos no país. A Colômbia é um país, assim como vários outros da América Latina, marcado pela lógica racista, escravista, colonial e exploratória. É um país que, assim como nós, passou por um processo de escravização e pelo genocídio indígena – inclusive, muitas das estruturas culturais raciais estabelecidas são similares às que aqui encontramos. Se no Brasil nós temos o mito da democracia racial, na Colômbia tem o mito do mestiço. Que a vitória de Petro e Francia na Colômbia seja um bom presságio para o Brasil retomar, através do avanço da esquerda aqui também, o caminho da democracia plena!